quarta-feira, 7 de setembro de 2016

Cinzas do Norte

Não há livros iguais e atrevo-me a dizer que não há leituras iguais. Há autores que leio mais pela escrita do que pela história narrada, o estilo e o domínio da palavra valem mais do que outra coisa (Baptista-Bastos, Ruben A. - por exemplo). Há leituras que são sôfregas, outras que demoram. Há leituras que me esgotam, outras que parecem uma barra energética. Enfim, paremos com comparações tolas, não há uma forma de se efectuar a leitura em nós. Essa é a sua beleza.
O outro livro que me trouxeram do Brasil foi Cinzas do Norte, de Milton Hatoum. E a experiência não podia ser mais diferente da de Que fim levou Juliana Klein?
Se o romance de Marcos Peres me cativou pela energia da linguagem, pela estrutura desestruturada (pelos aspectos pós-modernistas, internos e externos), pelo jogo constante entre livro e leitor, a obra de Milton Hatoum obrigou-me a mudar de agulhas, uma estrutura mais clássica, um outro ritmo.



Cinzas do Norte, terceiro romance de Milton Hatoum, passa-se, em grande medida, na zona de Manaus, no pós-guerra. (Rai)Mundo é um jovem rico, em revolta contra o pai, Trajano Mattoso. Acompanhamos a amizade de Mundo com (O)lavo, órfão que vive com os tios. Mundo quer ser artista, contra a vontade do pai, numa família de conveniência. É um "dramalhão" familiar e social. 
É um romance sobre relacionamentos e as consequências deles, sobre o papel da arte e da economia na arte; é um romance "histórico", retratando a história de Manaus (e consequentemente do Brasil) nos anos 60 e 70 do século passado, um romance da desilusão da vida, da precariedade desta.

Mundo é um jovem que tem tudo, mas que quer a arte como vida, Lavo é um jovem que nada tem e alcança o sucesso nos estudos. A amizade entre os dois desnuda as relações entre os diversos membros das suas duas famílias, relacionamentos marcados pela posição social, pela força do dinheiro e do amor, pelas escolhas, passadas e presentes. A narrativa principal é ampliada por cartas do tio de Lavo (Ran) a Mundo e por uma última carta que Mundo deixa a Lavo.

A força principal do romance é a descrição dorida das famílias, um retrato cru e amargo. 
De um lado a família de Mundo. Trajano Mattoso, um latinfundiário amazónico, constrói o seu império baseado na exportação de juta e na exploração humana, expiadas pelos presentes esporádicos que dá aos que trabalham na sua propriedade. Autoritário, herdeiro de uma lógica de trabalho única e enriquecimento, quer fazer do filho um retrato de si e do seu pai, não aceita divergências no trilho por ele idealizado. Para Trajano, as amizades políticas, as conquistas sexuais, o conhecimento da economia e do negócio familiar são o que requer do seu filho, por isso não compreende a revolta do herdeiro e não consegue lidar com ela de uma forma que não seja autoritária e violenta. Mundo sonha ser artista e assistimos ao longo do romance à sua luta e revolta contra um pai que não compreende e contra um estilo de vida a que tenta fugir e que usa para fugir. Alícia parece odiar o marido de uma forma patológica, presa num casamento sem amor por amor ao filho e ao estilo de vida que o primeiro lhe proporciona. 
Do outro, a família de Lavo, futuro advogado, melhor amigo de Mundo, narrador do livro. Órfão, vive com Raimunda, sua tia, que sustenta a casa (Lavo, o tio Ranulfo e os amigos bêbedos deste) como costureira. Ran(ulfo) não tem um trabalho fixo, a menos que encaremos a vida indolente como o seu emprego, vida marcada por biscates, mulheres e bebida, que tem encontros amorosos com Alícia, relacionamento iniciado antes do casamento desta com Trajano.

Cinzas do Norte é um livro sobre miséria, sobre a miséria económica e social (mesmo no meio da riqueza), política, familiar, em última instância, humana. É um livro triste por isso, mas ao mesmo tempo belo. O vazio em que as personagens se encontram ou colocam parece definido, há pouca capacidade para fugir a esse destino, as tentativas sucedem-se, mas parece que as escolhas só confirmam o triste fado delas. Em última instância, não é o sangue que aproxima as personagens de Cinzas do Norte, elas vão se afastando afectiva, mas também geograficamente. 
Se o retrato da vida familiar é cru, não menos realista e acre é o retrato da vida política e social dessa Manaus retratada e do Brasil em última instância, os jogos de poder, a destruição do património natural e histórico em virtude do "desenvolvimento".

Concluindo, se no livro de Marcos Peres o título é uma pergunta e de algum modo o mote/convite para o leitor o ler, o título deste livro de Hatoum funciona como uma  leitura final e poética (quase um epitáfio) do mesmo. 
Altamente recomendável, editado em Portugal pela Cotovia. Eu li na edição brasileira da Companhia das Letras. 


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