segunda-feira, 5 de setembro de 2016

Teóforo

"Je suis Charlie." A frase encheu as walls, twitters e mentes um pouco por todo o mundo. O ataque selvático na sede do Charlie Hebdo e outros que o seguiram (o "mais recente" em Nice) acordaram-nos para o perigo renovado dos extremistas islâmicos e imbuíram-nos de um espírito de identificação com as vítimas. O que me choca é a forma unidimensional como continuamos a nos condoer com todo e qualquer ataque perpetrado no ocidente e a ignorar (mediática e socialmente) os ataques para além da cortina ocidental. As 200 adolescentes de Chibok pouco mais são do que um rodapé jornalístico, raptadas há mais de dois anos (apareceram nos jornais há cerca de três semanas, por causa de um vídeo realizado pelo Boko Haram!). Os ataques no Iraque, na Síria, no Líbano, em diversos países africanos são quase ignorados pelos media ocidentais. Os raptos e mortes de cristãos em países muçulmanos passam ao lado da nossa sociedade, cultura e órgãos de comunicação. Há um valor intrínseco dado à nacionalidade e religião de cada um, consciente ou inconscientemente. A morte de inocentes, a barbárie primitiva dos terroristas, a difícil coabitação entre a nossa cultura ocidental pós-moderna e todas as religiões e extremismos religiosos são questões com as quais te(re)mos de lidar diariamente.

Por isso acho interessante (complicado e difícil) ler Inácio de Antioquia, a cerca de dois mil anos de distância, neste contexto de terrorismo, de defesa das liberdades ocidentais, de reacção/inacção destas aos ataques terroristas.
Inácio era cristão, numa época em que sê-lo poderia levar à morte, sancionada pelo "Estado". Andar no Caminho não era sinónimo de riquezas, prosperidade e tudo o mais que o coração humano anseia. Ser cristão era sinónimo, muitas das vezes, de sofrer perseguições, apedrejamentos, prisões, de migrações forçadas, de morrer no Coliseu. Até Constantino, estes fins era mais comuns em algumas zonas do império do que noutras, mas comuns em todo o Império. Os "apóstolos" e defensores da teologia de prosperidade modernos deviam ler livros de história, mas se não lêem a Bíblia, estou a sonhar demasiado alto! Inácio é preso por volta de 107 dc e terá morrido entre 110 e 115 dc, foi levado de Antioquia, onde era o pastor/bispo da igreja, até Roma, onde morreu. Deixou-nos sete cartas, não muito longas - a Policarpo, aos Efésios, aos Magnésios, aos Romanos, aos Esmirniotas, aos Filadelfos e aos Trálios.

Nas suas cartas é fácil perceber duas oposições distintas, mas perniciosas, com que a Igreja se debatia. De um lado, tentava-se acrescentar ao cristianismo o legalismo judaico, em suma, acrescentar a Cristo a lei e os seus rituais; do outro lado, o gnosticismo, nomeadamente, o docetismo, que defendia que Jesus tinha vindo não em carne, mas somente em aparência de corpo físico (em oposição a II Jo.7 e I Jo. 4:2, por exemplo). 

Se porém, como afirmam alguns que são ateus, isto é, sem fé, Ele só tivesse sofrido aparentemente – eles é que só existem aparentemente – eu por que estou preso, por que peço para combater com as feras? Morro pois em vão. Estaria então a mentir contra o Senhor. (Aos Trálios)

Filhos que sois da luz da verdade, fugi da cisão das más doutrinas. Onde estiver o pastor, segui-o, quais ovelhas.

Pois muitos lobos, aparentemente dignos de fé, apanham, através dos maus prazeres, os atletas de Deus. Se porém permanecerdes unidos, não acharão lugar entre vós.

Se alguém seguir a um cismático, não herdará o reino de Deus; se alguém se guiar por doutrina alheia, não se conforma com a Paixão de Cristo.

Se, no entanto, alguém vier com interpretações judaizantes, não lhe deis ouvido. É melhor ouvir doutrina cristã dos lábios de um homem circuncidado do que a judaica de um não-circuncidado. Se porém ambos não falarem de Jesus Cristo, tenha-os em conta de colunas sepulcrais e mesmo de sepulcros, sobre os quais estão escritos apenas nomes de homens. Fugi pois das artimanhas e tramóias do príncipe deste século, para que não venhais a esmorecer no amor, atribulados pela sagacidade dele. Todos vós, porém, uni-vos num só coração indiviso.


«Apegai-vos ao Bispo, ao Presbitério e aos Diáconos!» Alguns desconfiaram que eu assim falava, porque sabia da separação de diversos deles. No entanto, é-me testemunha Aquele, por quem estou preso, que por intermédio de homem carnal não vim a saber coisa alguma. O Espírito é que mo anunciou: Nada façais sem o Bispo! Guardai vosso corpo como templo de Deus! Amai a união! Fugi das discórdias! Tornai-vos imitadores de Jesus Cristo, como Ele o é do Pai!


O Evangelho constitui mesmo a consumação da imortalidade. Tudo se reveste de grande importância, se confiardes no Amor. (Aos Filadelfos)

Não sejais enganados por doutrinas estranhas, nem por velhas fábulas, as quais são inúteis, pois se ainda vivemos segundo a Lei dos judeus, devemos reconhecer que não recebemos a graça. 

Se, então, aqueles que eram educados na antiga ordem das coisas se apossaram da nova esperança, não mais observando o sábado, mas observando o Dia do Senhor, no qual também a nossa vida foi libertada por Ele e por Sua morte – alguns negam que por tal mistério obtemos a fé e nele perseveramos para que ser contados como discípulos de Jesus Cristo, nosso único Mestre – como seremos capazes de viver longe Dele, cujos discípulos e os próprios profetas esperaram no Espírito para que Ele fosse o Instrutor deles? Era Ele que certamente esperavam, pois vindo, os libertou da morte.

É absurdo professar Cristo Jesus e judaizar. O Cristianismo não precisa abraçar o Judaísmo, mas o Judaísmo deve abraçar o Cristianismo, para que toda língua possa professar a companhia de Deus.

Amados: estas coisas [que vos escrevo] – não que eu saiba algo sobre o vosso comportamento, mas por ser inferior a vós – tem por objectivo preveni-los para que não sejais fisgados pelos anzóis da vã doutrina, mas para que possais conquistar a segurança plena a respeito do nascimento, paixão e ressurreição que ocorreram na época do governo de Pôncio Pilatos, sendo verdadeiro e certo que tais eventos foram efectuados por Jesus Cristo, nossa esperança, de quem jamais possais ser afastados. (Aos Magnésios)

De que me vale um homem – ainda que me louve – se blasfema contra meu Senhor, não confessando que Ele assumiu carne? Quem não o professa negou-O por completo e carrega consigo seu cadáver (Aos Esmirniotas)


Condenado à morte, Inácio decide morrer como mártir para provar a sua fé ao seu rebanho e como sacrifício de louvor a Cristo, Seu salvador. Essa é a principal dificuldade na leitura de Inácio, a defesa do seu martírio, um anseio palpável pela morte, como prova da sua fé e derrota prática dos legalistas e docetistas. 

Não quero que procureis agradar a homens, mas que agradeis a Deus, como de fato agradais. Nem eu terei jamais igual oportunidade de chegar a Deus, nem vós, caso calardes, jamais haveis de ligar vosso nome a obra melhor. Pois, se calardes a meu respeito, serei palavra de Deus; se porém amardes minha carne, não passarei de novo a ser senão uma voz. Não queirais favorecer-me, senão deixando imolar-me a Deus, enquanto há um altar preparado, para formardes pelo amor um coro em homenagem a Deus e cantardes ao Pai em Jesus Cristo, por que Deus se dignou conceder de o bispo da Síria encontrar-se no Ocidente vindo do Oriente. É maravilhoso o ocaso: vir do ocaso do mundo em direção a Deus, para levantar-me junto a Ele.

 Pedi em meu favor unicamente a força exterior e interior, a fim de não apenas falar, mas também querer, de não apenas dizer-me cristão, mas de me manifestar como tal. Pois, se me manifestar como tal também posso chamar-me assim e ser fiel, na hora em que já não for visível para o mundo.

Sou trigo de Deus e sou moído pelos dentes das feras, para encontrar-me como pão puro de Cristo.

Perdoai-me: sei o que me convém; começo agora a ser discípulo. Coisa alguma visível e invisível me impeça que encontre a Jesus Cristo. Fogo e cruz, manadas de feras, quebraduras de ossos, esquartejamentos, trituração do corpo todo, os piores flagelos do diabo venham sobre mim, contanto que encontre a Jesus Cristo.

Maravilhoso é para mim morrer por Jesus Cristo, mais do que reinar até aos confins da terra. A Ele é que procuro, que morreu por nós; quero Aquele que ressuscitou por nossa causa. Aguarda-me o meu nascimento. Perdoai-me, irmãos: não queirais impedir-me de viver, não queirais que eu morra.

Meu amor está crucificado e não há em mim fogo para amar a matéria; pelo contrário, água viva murmurando dentro de mim, falando-me ao interior: Vamos ao Pai! Não me agradam comida passageira, nem prazeres desta vida. Quero pão de Deus que é carne de Jesus Cristo, da descendência de Davi, e como bebida quero o sangue d’Ele, que é Amor in­corruptível. (Aos Romanos)


"O que ele diz, ele o diz sobre si mesmo como alguém que está indo para a morte porque é um Cristão." William Weinrich, citado por Michael Haykin - Redescobrindo os Pais da Igreja.

Onde alguns vêem já uma estrutura católica na igreja do segundo século, acho que podemos ver a importância da liderança espiritual da igreja face aos ataques à fé, bem como a importância da comunhão e unidade do corpo de Cristo.

Na hora em que vos submeteis ao bispo como a Jesus Cristo, me dais a impressão de não viverdes segundo os homens, mas segundo Jesus Cristo, que morreu por nós para fugirdes à morte pela confiança na morte d’Ele.
 Adotai, pois a mansidão e renovai-vos na fé, que é a carne do Senhor, e na caridade, que é o sangue de Jesus Cristo. Ninguém dentre vós tenha algo contra o vizinho. Não deis pretextos aos gentios, para que a comunidade de Deus não seja injuriada por causa de uns poucos insensatos. Pois ai daquele por cuja leviandade meu nome for por alguns blasfemado.  (Aos Trálios)


Pela graça de que estás revestido, eu te exorto’ a acelerar ainda teu passo e a exortar também os outros para que se salvem. Justifica tua posição, empenhando-te todo, física e espiritualmente. Cuida da unidade; nada melhor do que ela. Promove a todos como o Senhor te promove; suporta a todos com amor, como aliás o fazes. Dispõe-te para orações ininterruptas; pede ainda maior inteligência do que já tens; sê vigilante, dono de um espírito sempre alertado. Fala a cada qual no estilo de Deus. Vai levando as enfermidades de todos como atleta consumado. Quanto maior o labor, maior o lucro.(A Policarpo)


Saúdo-a no sangue de Jesus Cristo, pois ela é minha perene e constante alegria, sobretudo se continuarem unidos ao Bispo, aos Presbíteros e Diáconos que estão com ele, instituídos segundo o plano de Jesus Cristo, que por Sua própria vontade os fortaleceu no Seu Espírito Santo.

 Filhos que sois da luz da verdade, fugi da cisão das más doutrinas. Onde estiver o pastor, segui-o, quais ovelhas. Pois muitos lobos, aparentemente dignos de fé, apanham, através dos maus prazeres, os atletas de Deus. Se porém permanecerdes unidos, não acharão lugar entre vós. (Aos Filadelfos)


Sejais submissos ao bispo e uns aos outros, como Jesus Cristo é com o Pai, segundo a carne, e os apóstolos com Cristo, o Pai e o Espírito. Que haja assim uma união entre a carne e o espírito. (Aos Magnésios)

Sigam todos ao bispo, como Jesus Cristo ao Pai; sigam ao presbitério como aos apóstolos. Acatem os diáconos, como à lei de Deus. Ninguém faça sem o bispo coisa alguma que diga respeito à Igreja. Por legítima seja tida tão-somente a Eucaristia, feita sob a presidência do bispo ou por delegado seu. Onde quer que se apresente o bispo, ali também esteja a comunidade, assim como a presença de Cristo Jesus também nos assegura a presença da Igreja católica. Sem o bispo, não é permitido nem batizar nem celebrar o ágape. Tudo, porém, o que ele aprovar será também agradável a Deus, para que tudo quanto se fizer seja seguro e legítimo. (Aos Esmirniotas)

Numa época como a nossa, há muitos que morrem sem saber bem porquê, morrem por serem ocidentais, por defenderem determinado aspecto do estilo de vida ocidental, mas morrem sem ter "voto na matéria"; mas há muitos a morrerem por andarem no Caminho, a liberdade de culto é uma miragem em grande parte do mundo, sendo o cristianismo castigado com a perseguição e/ou a morte. 
Inácio morreu por ser Cristão, quis morrer para morrer bem no seu cristianismo, o que numa era de seitas "cristãs" que defendem que Deus não quer que soframos, que podemos ter o que um Ricardo Salgado tinha antes da queda pela força da fé é um relembrar do discurso de Jesus e da "práxis" cristã. O cristianismo ainda é loucura para aqueles que o perseguem, bem como para aqueles que conhecem quem esteja disposto a perder a vida para a ganhar. 
Como Tertuliano disse, o sangue dos mártires é a semente da igreja. Atentem no tempo verbal!

Bibliografia:
Haykin, Michael - Redescobrindo os Pais da Igreja (Fiel)
Litfin, Bryan - Conhecendo os Pais da Igreja (Vida Nova)
Traduções de Inácio de Antioquia retiradas daqui.

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