Uma aldeia não se define pelo número de casas, ou de
habitantes, mas pela proximidade.
Quase sem pensar, quando ouço “aldeia” penso no campo, já
passei por aldeias que pouco mais eram do que quatro ou cinco casas, a última
vez que passei pela aldeia que me deu o patronímico fiquei com essa ideia, é
uma coisa pequena. Mas é para mim, que sou de fora, apesar de levar o nome
dela.
Cresci numa aldeia, na margem sul do tejo, à sombra da
Siderurgia Nacional, marcada pela poluição severa e sem tréguas de uma fábrica
ainda em laboração. Terá sido quando mais cresceu, quando a fábrica convidou ao
êxodo milhares de pessoas, que deixando as suas terras para ali foram em busca
de uma vida melhor, de trabalho, criando uma comunidade.
Ainda há algum campo a polvilhar as suas fronteiras, não
tanto como na minha infância, o "campo do vizinho", onde foram jogadas tantas e
tantas peladinhas, deu origem a prédios, alguns, fruto da crise, por terminar há
vários anos. O campo do vizinho, a quinta do Botas e outras, de que nunca soube os nomes ou que desapareceram por entre sinapses, deram origem a um bosquezito de
betão. O mundo quase interminável de verde para um petiz é agora curto,
destripado das árvores e plantas de outrora.
Calcorreia-se rapidamente a aldeia, tantas vezes fiz o
caminho até à paragem perto dos correios, por dentro da aldeia, onde em tempo
houve um “centro comercial”, duas ou três lojas dentro de uma cave, um talho,
uma papelaria e uma florista, resta a florista. Passava pela taberna, onde, em
tempos, comi um coelho divinal, também já fechada, pelos avós do V., por um
arquitecto, por casas baixas, pequenas, de aldeia.
Conheço gente que cresceu ali como eu, mas que partiu para
mais longe, moro ainda nas fraldas dessa terra, a um quilómetro da rua que me
viu crescer, mas quando voltam ou falam, fazem-no com saudade e amor por aquela terra,
referem-se à aldeia.
Quando ali vou, ver a avó e a tia, ver um jogo de futebol, andando
ou correndo por aquelas ruas, perco-me a falar com pessoas que me conhecem
desde pequeno, com amigos e colegas de escola. O passado é o que queremos fazer
dele, mas nunca se torna tão presente quando o revivemos em breves conversas e
o trazemos para um presente perene.
A aldeia era as vizinhas à janela, quer fizesse sol ou
chuva, de manhã e à tarde, tarefa interrompida somente pelo afazer das
refeições, vizinhas que relatavam as horas de chegada e partida à mãe quando
esta chegava a casa. Era a vizinha do Arrais, também ela Arrais, vizinha do 3º
esquerdo, que me dava de vez em quando um livro de banda desenhada porque sabia
que gostava de os ler, que levava uma galinha caseira à minha mãe, para ela
fazer uma canjinha para “os meninos”, era o Zé, na casa em frente da janela da
cozinha a encher o quintal de lixo, o Zé que partiu o ano passado, era as
brincadeiras de verão, na rua, até que os pais nos chamassem, era o não ser
amigo de todos, mas conhecer-mo-nos a todos, eram quatro ou cinco ruas, íamos
todos para as mesmas escolas, apanhávamos todos os mesmos autocarros.
Perdi um bocado deste espírito, nunca fui desportista,
preferia ficar a ler em casa do que ir para a rua, mas revejo-me nesta
comunidade.
A aldeia era o Rato, que vendia livros de cowboys e outras
coisas que não me lembro, sempre e só os livros, na praia da Lagoa, que ali
teve uma loja, era o Ti Cardoso, conterrâneo da avó, ás do bilhar a tentar
ensinar-nos, a mim e ao meu irmão, a jogar snooker, “Tu não tens muito jeito
para isto”, pois não, Ti Cardoso, pois não. É a mercearia da Bina, onde vou
desde pequeno, é o café do Rogério e do Chico, que hoje é do Parreira, que nos
tenta com o cheiro da comida, é sair de casa da avó almoçado e ficar com água
na boca. É o Pinto, agarrado a um taco de snooker, sem saber o que fazer e “vai
lá disto”, uma esticada sem rei nem roque e a bola a entrar, uma qualquer, mas das
dele! É o Sim Sim e a mãe Zilda, que tanto habitaram a minha infância, é a Bina
e o Borges, é o Zé e a Lena, são tantos nomes, alguns dos quais esquecidos ou
nunca completamente guardados pela minha mente que é mais visual.
É entrar em terreno familiar, é cumprimentar e ser
cumprimentado, é calcorrear memórias e espaços que nunca deixaram espaço para a
saudade porque sempre ali estive, mesmo não morando lá há mais de vinte anos. E
se sou um tipo mais recatado, mais calado, mais introvertido, se não joguei à
bola no PPFC, se nunca fui a muitos jogos de futebol ou se parei nos mesmos
sítios que aqueles que cresceram comigo, é difícil arrancar este sítio de mim.
Querem o quê? É uma aldeia, é feita de proximidades.
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