quinta-feira, 8 de junho de 2017

Paio Pires

Uma aldeia não se define pelo número de casas, ou de habitantes, mas pela proximidade.
Quase sem pensar, quando ouço “aldeia” penso no campo, já passei por aldeias que pouco mais eram do que quatro ou cinco casas, a última vez que passei pela aldeia que me deu o patronímico fiquei com essa ideia, é uma coisa pequena. Mas é para mim, que sou de fora, apesar de levar o nome dela.
Cresci numa aldeia, na margem sul do tejo, à sombra da Siderurgia Nacional, marcada pela poluição severa e sem tréguas de uma fábrica ainda em laboração. Terá sido quando mais cresceu, quando a fábrica convidou ao êxodo milhares de pessoas, que deixando as suas terras para ali foram em busca de uma vida melhor, de trabalho, criando uma comunidade.
Ainda há algum campo a polvilhar as suas fronteiras, não tanto como na minha infância, o "campo do vizinho", onde foram jogadas tantas e tantas peladinhas, deu origem a prédios, alguns, fruto da crise, por terminar há vários anos. O campo do vizinho, a quinta do Botas e outras, de que nunca soube os nomes ou que desapareceram por entre sinapses, deram origem a um bosquezito de betão. O mundo quase interminável de verde para um petiz é agora curto, destripado das árvores e plantas de outrora.
Calcorreia-se rapidamente a aldeia, tantas vezes fiz o caminho até à paragem perto dos correios, por dentro da aldeia, onde em tempo houve um “centro comercial”, duas ou três lojas dentro de uma cave, um talho, uma papelaria e uma florista, resta a florista. Passava pela taberna, onde, em tempos, comi um coelho divinal, também já fechada, pelos avós do V., por um arquitecto, por casas baixas, pequenas, de aldeia.
Conheço gente que cresceu ali como eu, mas que partiu para mais longe, moro ainda nas fraldas dessa terra, a um quilómetro da rua que me viu crescer, mas quando voltam ou falam, fazem-no com saudade e amor por aquela terra, referem-se à aldeia.
Quando ali vou, ver a avó e a tia, ver um jogo de futebol, andando ou correndo por aquelas ruas, perco-me a falar com pessoas que me conhecem desde pequeno, com amigos e colegas de escola. O passado é o que queremos fazer dele, mas nunca se torna tão presente quando o revivemos em breves conversas e o trazemos para um presente perene.
A aldeia era as vizinhas à janela, quer fizesse sol ou chuva, de manhã e à tarde, tarefa interrompida somente pelo afazer das refeições, vizinhas que relatavam as horas de chegada e partida à mãe quando esta chegava a casa. Era a vizinha do Arrais, também ela Arrais, vizinha do 3º esquerdo, que me dava de vez em quando um livro de banda desenhada porque sabia que gostava de os ler, que levava uma galinha caseira à minha mãe, para ela fazer uma canjinha para “os meninos”, era o Zé, na casa em frente da janela da cozinha a encher o quintal de lixo, o Zé que partiu o ano passado, era as brincadeiras de verão, na rua, até que os pais nos chamassem, era o não ser amigo de todos, mas conhecer-mo-nos a todos, eram quatro ou cinco ruas, íamos todos para as mesmas escolas, apanhávamos todos os mesmos autocarros.
Perdi um bocado deste espírito, nunca fui desportista, preferia ficar a ler em casa do que ir para a rua, mas revejo-me nesta comunidade.
A aldeia era o Rato, que vendia livros de cowboys e outras coisas que não me lembro, sempre e só os livros, na praia da Lagoa, que ali teve uma loja, era o Ti Cardoso, conterrâneo da avó, ás do bilhar a tentar ensinar-nos, a mim e ao meu irmão, a jogar snooker, “Tu não tens muito jeito para isto”, pois não, Ti Cardoso, pois não. É a mercearia da Bina, onde vou desde pequeno, é o café do Rogério e do Chico, que hoje é do Parreira, que nos tenta com o cheiro da comida, é sair de casa da avó almoçado e ficar com água na boca. É o Pinto, agarrado a um taco de snooker, sem saber o que fazer e “vai lá disto”, uma esticada sem rei nem roque e a bola a entrar, uma qualquer, mas das dele! É o Sim Sim e a mãe Zilda, que tanto habitaram a minha infância, é a Bina e o Borges, é o Zé e a Lena, são tantos nomes, alguns dos quais esquecidos ou nunca completamente guardados pela minha mente que é mais visual.

É entrar em terreno familiar, é cumprimentar e ser cumprimentado, é calcorrear memórias e espaços que nunca deixaram espaço para a saudade porque sempre ali estive, mesmo não morando lá há mais de vinte anos. E se sou um tipo mais recatado, mais calado, mais introvertido, se não joguei à bola no PPFC, se nunca fui a muitos jogos de futebol ou se parei nos mesmos sítios que aqueles que cresceram comigo, é difícil arrancar este sítio de mim. Querem o quê? É uma aldeia, é feita de proximidades.

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